domingo, setembro 17, 2006


Labor adicto I
Silvia Paes Barreto


No início da quente tarde da quarta-feira o artista se aproximou do centro do pátio vestindo terno preto, gravata vermelha, sapatos sociais e óculos. De cabelo molhado e bem penteado, puxava uma mala grande, de cor prata. Certa artificialidade compunha sua imagem. Não sei mais se era o artista ou um seu personagem. Iniciou a performance sacando da mala os objetos que iriam constituir seu ritual. A mala era daquelas cheia de compartimentos. Os objetos estavam cuidadosamente envolvidos em panos e o artista/personagem, metodicamente, alcançava-os e os dispunha sobre esteiras, também saídas da mala, anteriormente desenroladas no chão. Organizou uma espécie de altar, com o retrato de um outro homem também vestido de terno e gravata, um recipiente onde se iriam queimar incensos, e uma bandeja com bule e cuias de cerâmica.

Consistia o ritual nas seguintes ações, executadas em gestos obstinados, mas sem afetação, mais ou menos nesta ordem: retirar os sapatos sobre um pequeno tapete fora do limite das esteiras, entrar na área delimitada por elas, flexionar o corpo em frente ao que chamo de altar, sentar sobre os joelhos, acender o incenso, levar as mãos espalmadas ao centro do peito na altura do coração, flexionar o corpo novamente, sempre voltado para o recipiente onde queima, podendo servir-se do líquido do bule. Intercalados a esses momentos de mesuras, o protagonista da ação calçava os sapatos e, munido de giz, demarcava a área em torno, ampliando-a. Depois, retornava pela área contornada até a saída original, recomeçando todo o ritual: sapatos deixados fora, volta às genuflexões.

O nome da ação, labor adicto, e a forma como o artista estava vestido, eram índices do mundo do trabalho. As feições orientais, o gestual obstinado e as repetidas nuções, fizeram-me pensar numa dada cultura em que a ética do trabalho combinara-se à alta competitividade capitalista para gerar funcionários exemplares. Contudo, não me satisfez tal literalidade.

As esteiras estendidas ao chão, num local em que a área próxima caracteriza-se pela presença ostensiva do comércio popular informal, remeteram-me aos vários e, com freqüência, inusitados meios de subsistência inventados por aqueles que estão à margem de um sistema de produção, que cada vez mais elege como disfuncionais boa parte dos indivíduos aptos ao trabalho.

Reforçam essa imagem a inconseqüente recorrência nos atos executados e certa incongruência entre o minucioso ritual preparatório e a ação posterior, fora da esteira. O insistente ritual parece reafirmar os valores que permanecem em nossa cultura associados ao trabalho e ao emprego formal. È fato que ter com que trabalhar significa não somente inserção econômica, mas atende a uma série de outras necessidades, tais como reconhecimento social, sociabilidade, segurança, dignidade.

Além disso, o ritmo da ação artística aludia a algo metódico e disciplinado, aparente até na forma como o protagonista desdobrava o lenço e limpava o rosto molhado de suor e voltava a dobrá-lo. Contudo, nem mesmo método e disciplina, quando aplicados à formação profissional, garantem hoje inserção no mercado.

Labor adicto fez-me pensar nesse descompasso, nas perspectivas de vida frustradas, nos desejos não recompensados, nos desvarios de uma vida improdutiva. Pode ser que, como é bem certo que tenha ocorrido, essa seja uma visão bastante pessoal, imersiva. Em todo caso, é bem sabido que as intenções do artista não fecham as possibilidades de significação da sua produção.

Tanto é assim que, ao final da ação, antes de recolher os pertences, o artista distribuiu folheto com um ideograma e a frase “Obrigado pela atenção”, o que reembaralhou as instâncias da representação e da apresentação.


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