sexta-feira, setembro 22, 2006


Tudo o que é sólido se desmancha no ar
Ana Luisa Lima



Pânico: sentimento constante aos que se detinham a observar Flávia Pinheiro.

O primeiro movimento: com um pote de vidro em mãos cheio de farinha de trigo, ela fez na Rua da Aurora – em horário de trânsito intenso (carros e ônibus) – uma linha branca de um lado a outro. O segundo movimento: repetiu o trajeto um pouco mais adiante, vindo no sentido inverso.

Criou uma passarela em que só ela se sentia segura. Nesse espaço ela fazia sua elegia. Caminhou de lá para cá, primeiro com uma foto em mãos falando algo sobre memória; questionava se aquelas que tinha da infância eram delas de fato, ou se surgiram depois, com as histórias contadas pela mãe. Ela fechou os olhos com as mãos e disse se sentir embaraçada.

Foi de lá para cá, de novo. Os carros! Não, ela não os via... Ou se via, não se importava. Ela dançou, importunou os transeuntes, fumou um cigarro. Flávia ia de lá para cá... Corria perigo.

Colocou uma camisa azul; queria ser outro ser. Seguia um, tentava. Tirava e botava a camisa... Queria ser outro, e outro, e outro... Não sabia se. Não sabia qual. Atravessou mais uma vez a rua; o ônibus! Ela caiu; pendeu para o lado como se atropelada. Levantou-se, seguiu. Em momentos ela se ria de tudo. Fazia movimentos desconexos. Gritava.

E eu acompanhando tudo, numa performance intimista, descontrolava-me. Não sabia se aquilo tratava de uma bela poesia sombria tal qual Baudelaire, ou se era porra-louquice. Uma artista que havia conseguido mergulhar profundamente nessa terrível beleza do efêmero desses tempos ainda ditos pós-modernos ou uma inconseqüente diante do perigo que corria de ser esmagada...

Eu fiquei com a poesia. Porque esmagada somos ordinariamente: medos: de violência, de ausência de si mesmo e do outro, de não ter os meios necessários para ser, de não saber o que ser... Extraordinariamente é que a arte sublinha esse livro escrito pelo cotidiano e nos faz notar a beleza do terrível.

Pânico: sentimento constante para os que se detiverem a debruçar-se sobre a obra de Flávia Pinheiro. Um algo marcante e efêmero. Um sólido que vai se desmanchar no ar. Mas antes disso, há de deixar seus rastros por um tempo, como a farinha de trigo no asfalto.

Ela atravessa a rua mais uma vez. Anda pela calçada que margeia o rio. Mais à frente espera o sinal fechar, atravessa a rua pela faixa de pedestre (o passar dito seguro). Vai embora... Como se nada...

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