sábado, setembro 16, 2006



Maicyra
Clarissa Diniz



Algumas delicadezas já nascem escondidas e parecem querer morrer assim. Dói imaginar essa fuga de doçuras; dói a responsabilidade de ter que aguçar nossas sensibilidades todas em busca da captura dessas coisas fugidias...

Hoje foi um desses dias que começou com a marca de tal responsabilidade mas que findou com a alegria e o encantamento daqueles que não permitem que lhes escapem delicadezas.

Aquela esquisita criatura gramínea – criatura somente a priori – que vi chegar de longe e em relação à qual eu, desde antes, era um tanto desconfiada, foi vindo numa esquisitice tão própria que, já de início, soou-me meiga. Todavia, sua aparente artificialidade me incomodava ainda.

Meus resquícios de noções de uma barreira entre o natural e o artificial me deixavam avessa àquilo que eu sabia não ser natural mas que, contudo, apresentava-se como real. A criatura gramínea de andar compassado, de movimento trêmulo e de tez plástica ia de encontro às minhas expectativas de uma arte cada vez mais verdadeira.

No entanto, sabia eu também da pluralidade das verdades e, muito mais que isso, sentia necessidade de continuar me permitindo ser conquistada. Então lá veio ela, a criatura, e aos poucos dela me aproximei.

Chegando perto, sua artificialidade ia se desfazendo. Mesmo a idéia de personagem criada pela artista – com a qual, pessoalmente, não compartilho – foi-me parecendo cada vez mais natural, e o que antes me incomodava por parecer encenação passou a me comover por soar como pele, como proteção.

Por baixo daquela plasticidade era possível ver e acompanhar seu corpo de ser humano. Mais intimamente – e a intimidade é fator crescente e essencial em performances de longa duração –, percebi a calcinha branca ainda com toques infantis por trás da malha plástica que grama simulava.

Meus instintos me impulsionaram a aguá-la (ela já nos convidava a isso, pois, deitada no chão de uma quente calçada recifense, ao seu lado pôs um regador), e, aguando-a, dei-me conta do que ocorria: ali eu não regava uma criatura, um personagem, mas sim aquela garota protegida por uma pele de grama plástica. Não restavam, portanto, mais dúvidas de sua verdadeira natureza humana, natureza essa que se deixava revelar por entre os espaços vazios de uma grama que não lhe ocupava o corpo inteiro.

A delicadeza da idéia de alguém que se mostra e se protege era o que me faltava. Aguar sua pele tão branca e tão nervosa me fez também sentir-me delicada e materna. Havia uma sinceridade no ar, imaginei.

Por mais que eu, que, por minha vez, já tive fortes experiências gramíneas nada artificias, fosse pouco apegada (e creio ainda ser) a vários aspectos da proposição estética daquela Maicyra de Brasília, foi-me inescapável aquele delicado momento.

No fundo de meu espírito então atormentado pela tensão pré-menstrual, restou a marca da captura de uma delicadeza que agora não mais me poderá ser fujona, posto que a tenho – para insistir numa contradição moderna – verdadeiramente vivida . E, assim, toda a artificialidade se mostrou natural. Pelo menos até o fim da duração daquele momento – que se perpetua, que se perpetua, e que se faz perpetuar...

Um comentário:

ni disse...

amo suas palavras... seu pensamento me inspira.
rosane felix