sábado, setembro 15, 2007

Desejo eremita

Rodrigo Braga



Sim! Eu vim agora mesmo do centro da cidade e posso afirmar que o apocalipse já começou! Sinto cheiro de loucura no ar. Tá todo mundo se afogando de angústia, tá todo mundo correndo sem saber onde vai dar. Raiva e vontade de ter motivo pra qualquer coisa acontecer de fato. Essa é a capital do carnaval mais violento a cada ano. Tem o maior galo do mundo. O artista também pôs ereto o maior “peru” do mundo, bem abaixo do umbigo do universo. Orgulho de ser; somente “ser”. Só aqui a tipografia Armorial ainda escreve “cultura”. Não temos horário de verão porque já somos o verão, não é?! Mas levamos em nossos pulsos moles o fuso-anti-horário de tempos arcaicos. Minha cidade é ícone do que tem de maior em linha reta e do que tem de pior também, eu aprendi isso na escola que também me ensinou o maracatu... E o governador já avisou que os soldados do inferno estarão nas ruas aos milhares nessa folia para fazer os adolescentes beberem seus lolós até dissolverem o esôfago, para fraturar muitas canelas subnutridas com seus cacetes duros, para fazer neguinho pular para a morte no maior esgoto a céu aberto do mundo. Nada, menino! Nada que eu quero ver! O Cão Sem Plumas e sarnento agoniza como nunca. Já vou. Sinto uma vontade enorme de me isolar covardemente num paraíso qualquer, enquanto o paraíso existe. A floresta, a caverna: isso é solução pra mim. Vou me mandar para um lugar bem alto e verdinho. Vou trepar na árvore, vou trepar com a terra. Você sabe tanto quanto eu que a humanidade vai aquecer o planeta até que aqueles lindos vegetais cozinhem todos e virem léguas de deserto. Lá é alto, só pode virar deserto. Enquanto isso minha cidade em poucas décadas vai ser tomada por tubarões gigantes e peixinhos desequilibrados da cadeia alimentar. Nenhum prefeito da Veneza de cá vai ter que se preocupar mais com a eterna falta de saneamento, toda a merda já vai estar boiando. Nossa elite com suas bagagens pesadas e vazias de consciência vai lotar os aviões, mas nem todos caberão na Disneylândia. Já a famigerada classe média vai ter que subir o morro e pedir pinico. Mas eu não. Vou estar curtindo o ar fresco. Lá eu vou andar, andar e andar para gastar o suor acumulado por todo esse tempo nas minhas glândulas sebosas! Um dia vou juntar muita grana para comprar aquele quadragésimo quinto andar da Moura Dubeux. Aí serei imperador do meu domínio, e, do alto da minha contradição, poderei praticar a política incorreta que eu quiser com os meus empregados. De lá poderei até avistar as duas faces do Alto do Mandú e, de quebra, ainda escapar do dilúvio. Mas agora não. Agora sou só um cagão! Quero fugir dessa realidade que virtuo todos os dias, desse cheiro de caranguejo morto misturado com cocô que sai das valas do nosso Recife Antigo e nauseia os parcos turistas. Minha cidade, além de gente despejada nas calçadas, também tem o povo mais mal educado da face da terra, que suja, cospe e ejacula a imoralidade de tirar vantagem até nos mínimos detalhes. É uma inteligência empírica e perspicaz, uma incrível capacidade de ser o melhor. E dizem: “eu pago meu IPTU e quero ver aquele lindo batalhão alaranjado varrer a Guararapes nove vezes por dia! Eu jogo fora, sim. Não fui eu que comprei?”. João Grilo quer mais, ainda mais. Ele leva bomba mas também ri da sua cara, Mané! Eu? Eu quero estar bem longe dos toques dos clarins do Momo gorduroso! Isso mesmo, minha gente! Desejo caminhar por sobre as pedras do lindo riachinho enquanto esse povo todo veleja no mar de lama! Vou ficar bem longe dos ruídos dessa cidade. Buzinem. Agora buzinem à vontade, seus bostas!! Sintam-se motoristas felizes ao encherem seus tanques quando o cartel der uma trégua e fizer uma promoção relâmpago. Depois tranquem os cruzamentos, esculachem qualquer regra, pois a CTTU só pega o otário – esse sujeito cada vez mais raro. Qualquer iniciante já aprendeu a regra do jogo: “molhe minha mão aqui e agora, quero meus dez contos do guaraná, aqui sentou pagou, é três paus antecipados, viu??!! Colabore com sua segurança. Co-la-bo-re, entendeu?? Isso agora aqui é meu. Isso aqui não é de mais ninguém.” Sim, a bronca é pesada! Uma mulher degolada a cada semana, a menininha foi deflorada pelo papai. Já naquela outra cidade, o filhinho da mamãe foi esfolado pelas ruas pendurado na charrete dos demônios... Meu Deus, eu bem que sei que também sou culpado! Minha mãe muito politizada me ensinou que eles também são vítimas... os bárbaros também são vítimas apenas por serem dejeto social! Mas meu bem, não tem como escapar se ficar na urbe. A saída é o mato, o mato! Cardinot não explica, mas Alex quer explicar. Esse calor úmido não me deixa mais pensar. Esse mormaço salobro enferruja até meus miolos! A cachoeira vai me fazer bem. Amanhã voltarei de alma lavada e desbotada.

Nenhum comentário: