sábado, setembro 15, 2007

Arme os malucos, depois discuta que filmes influenciaram suas decisões.

Carlos Heitor Barros
Às vezes eu olho para as canetas como um masoquista olha para uma gilete, como que precisando de dor para aliviar. Desejo e repulsa. Penso em outra coisa, tento outro objeto, mas os olhos insistem em esbarrar onde não devem. Mas caem numa armadilha espiralada onde o centro está cada vez mais próximo, até que não possa ser negado. O ponto fixo, mesmo que um ponto cego, no meu caso, uma caneta cortante.
Já a usei em outras épocas para perfurar-me, até deixar escapar uma líquida e densa poesia. Quente, pulsante, nada mais fazia do que sujar o papel abundantemente, mas me aliviava da pressão. Eu que não podia chorar, deixava meu corpo expurgar suas dores discretamente, ainda que uivando. Solitário quando secreto, amparado quando necessário.
Já cortei minha pele com ela finamente, de forma a criar um tipo de tatuagem por escarificação. Achava que isso podia ser arte. Achava que isso podia ser interessante. Achava que eu poderia ser interessante. Ou ao menos tentava. Pergunte-me agora e eu posso ter certeza de que eu não fazia idéia do que procurava. Desconfiava disso então, mas não tinha certeza. Não sei se isso ajudaria, no entanto: certeza de não saber o que se quer não ajuda a querer, nem a caminhar. Talvez as absurdas paisagens de sonhos em desenhos confusamente multi-estilisticos nas minhas costas sejam testemunhas dessa tese.

Já matei dezenas também, com essa mesma lâmina de tinta, em confronto próximo e pessoal. Brandindo golpes cheios de raiva de mim mesmo procurando ferir profusa e profundamente quem quer que dividisse o ambiente, debatesse a tragédia, fosse platéia. Brigar com qualquer outro era o suficiente para me manter longe desse incansável inimigo, desse constante eu-nêmesis. Caneta em punho cerrado, o papel quase rasgando sob os signos tão pesados. Alvos não precisam de sentido, eu precisava deles: alvos, sentidos...

Vi-me num mundo de semideuses de beleza e estilo. Num mundo que se identifica por relógios de pulso. Num mundo que sugeria tanto, mas me fazia tão pouco. Senti-me compelido a fazer o que esse mundo fazia. Me maquiei, escolhi os melhores ângulos, as roupas, palavras e atitudes certas. Fiz-me personagem como ponte entre o que eu era e o que o mundo desejava. E quando o mundo me desejava eu sabia que tinha vencido um pouco. Mesmo tendo me perdido um pouco.
Meu problema talvez só fosse gostar de mim. Sem matar ninguém, sem ferir a ninguém. Sem machucados ou dores. Sem machucados ou dores não feriria ninguém, não mataria nem moscas.
Uma vez li que as palavras separam, enquanto as ações unem. Achei que eram palavras de um mestre de yoga, mas descobri que a frase era creditada a um grupo terrorista basco.
Só interessa por onde começar se você não tiver começado ainda.

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