sábado, setembro 15, 2007

Por uma poética da resistência - sobre a série Inimigos de Gil Vicente -

Maria do Carmo Nino


Quando os amigos se entendem bem entre si, quando as famílias
se entendem bem entre si, então acreditamos estar em harmonia.
Engano puro, espelho para cotovias.
Às vezes sinto que entre dois seres que se quebram a cara
com bofetões há muito mais entendimento do que entre os que estão olhando de fora.

Julio Cortazar , Rayuela.

“Os artistas são os benfeitores da humanidade”
Fellini, em Ginger e Fred



A natureza do êxtase estético propiciado pela obra de arte é sobremaneira complexa: trata-se de uma forma de conhecimento que opera inicialmente pelos sentidos para depois atingir a razão. Nossos sentidos se abrem por completo e encontramo-nos perdidos em uma plena floresta de um mundo que nos toma por inteiro, sem que saibamos exatamente porque somos levados pelo sentimento que vivenciamos e, apenas em um momento posterior, tentamos conciliar o que confusamente experimentamos com alguma razão que possa ter despertado em nós este sentimento. E isto se faz por partes, na proporção em que observamos detalhes, em que procuramos o sentido da obra, aquilo que Francis Ponge chamava de >>olhar-na-medida-em-que-falamos-dele <<.

Mas o que esperamos de uma obra de arte? Independente da sua natureza literária, pictórica, teatral, cinematográfica ou mesmo musical, guardamos em nosso interior mais recôndito a esperança que ela faça revelar em nós emoções incontidas, alegres ou não, desconfortáveis ou reconfortantes, apaziguadoras, inquietantes, ou mesmo que ela nos propicie uma revelação sobre nossa própria natureza humana que não conhecêssemos ainda, algo que está além dos sentimentos que cotidianamente classificamos como felizes, tristes ou simplesmente melancólicos.

Quando me deparei com as obras da série intitulada Inimigos do pintor Gil Vicente, este sentimento tão definitivamente radical e sem apelo foi de rejeição, porém ao refletir sobre o porque desta minha reação, percebi com uma certa surpresa que não conseguia encontrar uma razão suficientemente convincente para mim.

Afinal conhecendo e admirando há tempos a trajetória do pintor, a sua persistência em permanecer fiel aos preceitos de uma arte com recursos simples, imune aos efêmeros modismos, a maestria do desenho que só se confirma com o tempo, tudo aparentemente e coerentemente estava lá, então por que esta sensação de não convencimento?

Tampouco o conteúdo agressivo do tema da série me assegurava uma razão suficiente, afinal uma das maiores e importantes características da arte é a possibilidade de abordar esteticamente sentimentos que na nossa vida cotidiana rejeitaríamos, ou, para falar simplesmente, dizer belamente o feio. Para prová-lo basta imaginar o quanto dos grandes e magníficos momentos de legado artístico da nossa história cultural devemos às grandes tragédias.

Crimes, massacres, injustiça social, assim como o sentimento de impotência causando desesperança, angústia e terrores infindáveis, não são estranhos a nenhum de nós nem na vida, nem na arte. Eu mesma me observo algumas vezes (não tantas vezes quanto gostaria, é verdade) tomada pela emoção diante de filmes, fotografias, histórias, cujo conteúdo estão longe de serem reconfortantes e ainda assim o sentimento paradoxalmente (ou catárticamente) é de uma euforia, é um sentimento que lhe leva para cima. Então, por quê?

Por que a patente desorientação do artista diante das agruras da vida culminando com a radicalidade do seu ato não me comove, nem me convence? Por que até mesmo o que poderíamos chamar de coragem ao colocar-se tão claramente em cena na representação desta série de atos insanos, não permite a minha identificação ou meu abraço?

Pode ser que, finalmente, eu tenha compreendido o que em mim faz resistência: Gil, eu acredito, não tem como inimigos este papa específico, ou mesmo a atual rainha da Inglaterra, ou ainda o presidente vigente. Penso que a sua rejeição se dá contra as instituições e as convenções do poder no nosso mundo, do qual estas figuras são emblemáticas. E a esse sentimento de não–aceitação ele se entrega e sucumbe. Dá-se por vencido. O seu ato não é heróico, não é nem mesmo um ato de sacrifício, é um ato de desistência.

Ao escrever estas palavras, me lembrei do pai-fundador do anarquismo: Henry David Thoreau, que em seu fulgurante e brilhante ensaio prega a desobediência civil: O melhor governo é o que governa menos, ou absolutamente não governa, disse. Que, como o autor, sejamos ou não esperançosos de um dia prescindir de governo, eis algo sobre o qual cada um de nós pode refletir à vontade, mas, independente de onde nos situemos, é preciso resistir e continuar a luta. É preciso procurar contribuir para a formação da consciência histórica do indivíduo ou da nação, de modo que ela possa se dar positivamente.

Nas mãos de Ghandi, que se recusou a responder à violência do imperialismo britânico com uma violência oponente e simétrica, longe da resignação, do conformismo ou da passividade que esta ação poderia deixar supor, o texto de Thoreau serviu como libelo para ajudar a manter o equilíbrio sobre o gume da espada, em um profundo trabalho da violência sobre si mesma que foi capaz de conduzir à uma transfiguração do próprio homem ¹ e levar à vitória, embora a luta ainda tenha que continuar, sempre.

*

¹ Dadoun, Roger, A Violência, tr. Pilar F.Carvalho, Carmen C. Ferreira, RJ, Difel, (1993) 1998, p.103.

3 comentários:

Anônimo disse...

quem atira já está morto.

tiro pros dois lados: pá, pá!
morre artista, morre poder. morre ninguém.
mas o desenho de gil ainda pulsa.

José Vilmar disse...

É como pulsa é a realidade falar do poder que nada faz. O trabalho de Gil é muito forte e bom, e precisamos de ser forte também de falar com ele fala.Gosto muito do trabalho do Gil Vicente.

José Vilmar disse...

É como pulsa é a realidade falar do poder que nada faz. O trabalho de Gil é muito forte e bom, e precisamos de ser forte também de falar com ele fala.Gosto muito do trabalho do Gil Vicente.